A Dama e a Criatura | Milicent Patrick e o cinema de homens brancos

Mesmo dentro do meio cinéfilo na maioria das vezes os profissionais que trabalham nos bastidores dos filmes não são lembrados ou reconhecidos. Dificilmente vemos matérias sobre o responsável pelas cartelas de crédito, a pessoa que criou as caixas rosas icônicas de O Grande Hotel Budapeste, ou o criador de um figurino e maquiagem marcantes.

Isso acontece não só porquê tais nomes só são lembrados em meios específicos, mas também pela falta de acesso à essas informações. O IMDB e outros sites especializados nesse tipo de conteúdo são recentes, e mesmo assim filmes mais antigos sofrem com a falta de créditos que existia no passado da indústria, onde uma pessoa recebia o crédito por um departamento inteiro.

E é justamente por esses motivos que conhecer a história de Milicent Patrick é tão importante. Além de ser conhecida ainda em vida pelo seu trabalho como a criadora do design da Criatura do filme Monstro da Lagoa Negra, ela é um ótimo exemplo sobre como mulheres e outras minorias são apagas da história, e os motivos e interesses que estão por trás disso.

Desde criança Milicent apresentava uma vocação artística, crescendo nos arredores do Hearst Castle envolta em luxo e obras de arte, logo que sua família foi para Califórnia ela ingressou na única escola de artes que aceitava mulheres, a Chouinard Art Institute. Não demorou para o seu talento ser percebido e ela ingressar o time de mulheres que cuidava da coloristas dos estúdios de animação da Disney.

Depois de um tempo ela foi para o departamento de animação, mas por conta de várias enxaquecas deixou o estúdio e passou a trabalhar de modelo e figurante. Sempre fazendo desenhos nos bastidores das gravações, ela foi rapidamente descoberta por Bud Westmore, que fazia parte da família de maquiadores mais poderosa e influente de Hollywood. Bud levou ela para o departamento de maquiagem da Universal Studios, onde ela criaria diversos figurinos e, principalmente, monstros.

Durante a criação do design da Criatura do Lago, os executivos viram que tinham em mãos uma ótima ferramenta de marketing, uma mulher bonita que cria seres obscuros. E em uma estratégia de divulgação do lançamento de Monstro da Lagoa Negra, Milicent foi enviada para uma turné nacional.

Apesar de nunca falar que era a responsável pela sua criação, à pedido de Bud, ela ganhou uma projeção e destaque que até hoje raramente acontece para quem está atrás das câmeras. Inconformado com a fama de Milicent, Bud pediu sua demissão assim que ela voltou de viagem, e nem mesmo os diretores e executivos conseguiram salvar ela, já que todos tinham medo da influência que a família Westmore possuía dentro da indústria.

Milicent nunca mais trabalharia na produção de um filme, e seguiria o resto dos anos como figurante.

Provavelmente o único motivo que impediu que a história dessa mulher fosse esquecida foi a turnê de promoção para o filme, que gerou vários fãs e arquivos sobre ela. E sem isso provavelmente nunca saberíamos da sua existência.

A história de Milicent é um claro exemplo de como, além de apagar minorias, os homens poderosos moldam a história para que eles sejam os únicos lembrados.

Apesar de extremamente talentosa, nada pode proteger Milicent. E a forma como todos os outros homens do estúdio onde ela trabalhavam preferiram abrir mão de uma artista incrível (sem contar na parte de ferramenta de divulgação de seus filmes), apenas para não irritar outro homem mostra bem como um sistema que se preocupa mais em manter o status pode ser prejudicial para minorias.

Milicent, uma mulher branca, cis, rica e sem nenhuma deficiência foi vítima desse sistema que busca o silenciamento e apagamento daqueles que não fazem parte do clube do bolinha. E nos deixa questionando o que pode ter acontecido com outras pessoas, que faziam parte de outros grupos, durante a história do cinema.

Sempre que vemos fotos e gravações de bastidores antigos temos um único tipo em cena: Homens brancos. As mulheres são apenas as atrizes e figurantes bonitas, alguém de outra etnia é o “outro” e ganha uma representação baseada em estereótipos.

E até mesmo filmes atuais parecem não se preocupar muito com essas questões, caso tenham interesse recomendo ver os bastidores da animação Procurando Dory, onde temos um time de animadores exclusivamente masculino debatendo o filme, e algumas cenas separadas com uma mulher comentando ele. Cenas essas que parecem ter sido colocadas justamente por terem visto que nenhuma mulher aparecia no resto das filmagens.

Até hoje só três mulheres ganharam o Oscar de Melhor Direção em 94 edições do prêmio. Nenhuma ganhou Melhor Fotografia, e poucas foram lembradas em outras categorias técnicas.

Por isso o livro de Mallory O’Meara ,publicado pela editora Darkside Books, não é só necessário como um registro histórico, mas também como uma carta de resistência e lembrança da importância da luta por mais lugares e mais reconhecimento para outros grupos que não sejam os mesmos 20 homens brancos de sempre.


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